domingo, 14 de agosto de 2011

A história do teatro é uma doce contadora de “estórias”

*Por Amauri Araujo Antunes

Antes que os estudiosos me critiquem, afirmando que na linguagem culta só existe a palavra “história”, eu me defendo, retomando uma proposta muito antiga, de 1919, que pretendia oferecer uma tradução eficiente em nossa língua para os termos ingleses “story” e “history”, o primeiro empregado para ficção e o segundo para realidade.

Ficção e realidade, como distinguí-las quando falamos de teatro? Um grupo de atores se reúne na praça, irão representar “Romeu e Julieta”. O público se aglutina, observa meio atento e meio desconfiado: algo irá acontecer. Um banner colocado nas imediações informa que há um Festival de Teatro na cidade, o FETISM - Festival de Teatro Independente de Santa Maria, mesmo assim paira uma certa dúvida. O espaço urbano está sendo invadido por alienígenas multicoloridos.



Os atores, agrupados, saem em cantoria. Um músico popular, vendo a movimentação, se empolga, dispara em correria, aproxima-se de um companheiro e o convence a emprestar-lhe um violão. Segue o grupo de atores. A trupe se posiciona e inicia o espetáculo. Dois cães se empolgam com o movimento e decidem participar da cena. O músico popular acompanha, ao violão, as canções trazidas pelos atores. E assim, em um salto de 4 séculos, o teatro de Shakespeare ressurge na praça pública, com situações tão próximas e semelhantes a aquelas presenciadas no palco Elisabetano: animais, bêbados, nobres... a população da cidade em comunhão artística.

Na noite anterior, parte da história de uma nação fora lembrada, por meio de uma estória tão real... Filhos de uma ditadura militar, argentinos arrancados do ventre da mãe e incubados na ilusão de uma pátria, sem nome ou identidade. As atrizes do grupo “TEA Teatro”, de Buenos Aires nos mostravam seu “rompe cabezas”, em um espetáculo de técnica e precisão. É importante saber ler nas entrelinhas.

O festival prossegue. Nas praças e nos palcos. Eu, como público sedento, acompanho as peripécias dos espetáculos de rua e as ousadias da cena no teatro. Consulto a programação. Em breve, haverá um Cabaré. E um encontro do Palco Fora do Eixo... mas, o que é um Palco Fora do Eixo? A que palco, a que eixo estão se referindo? Consulto nosso guia virtual que tudo sabe e tudo vê, e o Google me responde:




“O Palco Fora do Eixo (PFE) é uma das frentes temáticas de atuação da maior rede de cultura livre do país, o Fora do Eixo (FDE), que tem o intuito de estimular e horizontalizar as ações e experiências coletivas. Compartilhando informações e tecnologias num processo com estrutura aberta e orgânica, a rede tem como proposta o fomento de um mercado autoral, independente, alternativo e auto-sustentável. Pautados em conceitos de economia solidária e produção colaborativa, o FDE busca construir um sistema de produção e intercâmbio distinto do padrão-mercado, capaz de estimular e dar vazão à multiplicidade de linguagens, ações, empreendedorismos e outras formas de ativismo sócio-cultural.

“Com uma estrutura consolidada na base da troca de serviços e tecnologias sociais, o Palco Fora do Eixo dialoga principalmente com linguagens do teatro, do circo, da dança, da performance e de outras manifestações cênicas e corporais, presando (sic) sempre pela integração das artes. O objetivo principal do PFE é promover, fomentar, difundir e divulgar manifestações cênicas de grupos/artistas independentes a fim de desenvolver uma nova forma de se produzir, construir e consumir cultura,valorizando essas manifestações que propõem a arte não só como entretenimento, mas também como conhecimento e ferramenta de formação que mantém uma relação intrínseca com as políticas públicas.”


Fico sabendo deste movimento nacional, frente cultural, vanguarda na guerra contra o eixo. Parece estória, é história. Eram três, já são dez, podem ser oitenta, oito milhões... É empolgante. Minha memória embotada relembra relatos ouvidos em sala de aula, histórias e estórias de uma vila teatro, há muito tempo. Relembro os estudos sobre o Teatro do Estudante, que no Rio Grande do Sul foi fundado em 1941. Nele surgiram: Jose Lewgoy, Walmor Chagas, Fernando Peixoto, entre tantos outros. O foco era fugir do eixo, da dependência do mercado que ditava as regras de um teatro de entretenimento apenas. 70 anos se passaram.

O Teatro do Estudante foi um fenômeno nacional (assim como o Fora do Eixo). Há referências que apontam para números superiores a 200 grupos. A iniciativa começou com Paschoal Carlos Magno e durou 14 anos, entre 1938 e 1952. O projeto tinha uma função dupla: pedagógica e artística. Pretendia ensinar teatro e aperfeiçoar os espetáculos brasileiros. Introduziu o diretor teatral, em substituição ao teatro centrado na estrela do primeiro ator.
Curiosamente, o espetáculo de estréia do Teatro do Estudante foi “Romeu e Julieta” (esta peça tem uma força...). Em 1952, Paschoal Carlos Magno cria, no porão da casa de sua mãe, o teatro DUSE, um pequeno espaço para 100 pessoas (mais ou menos o tamanho do TUI, em Santa Maria, onde ocorrem apresentações do FETISM). Este teatro funciona, gratuitamente, até 1956. Entre as aventuras de Carlos Magno, destaca-se uma empreitada em 1953: 15 caminhões, transformados em palcos ambulantes, onde se realizaram cerca de 500 apresentações teatrais, no Rio de Janeiro.



Com o golpe militar de 1964, sua carreira de diplomata foi prejudicada. Mesmo assim, criou a aldeia de Arcozelo, em uma fazenda situada em Paty do Alferes – RJ, um espaço destinado ao teatro e à cultura, com alojamentos, refeitórios e teatros. Seu desejo era criar um centro independente de pesquisa e formação artística. Em Arcozelo, ele realizou, em 1971, o VI Festival Nacional do Teatro do Estudante, com a participação de mais de 30 grupos do Teatro do Estudante de todo o Brasil.

Graças ao esforço de Carlos Magno foram realizadas Caravanas Culturais que utilizaram aviões da FAB, ônibus e barcas para percorrer diversos estados do país, unindo jovens em torno da ideia da democratização da cultura. A Vila de Arcozelo, porém, consumiu toda sua fortuna e o levou à falência.




Histórias ou estórias? As lembranças me sacodem. Unindo os tempos, gerações de artistas e ativistas da arte, irmanados na mesma necessidade de democratizar o acesso, romper com as estruturas comerciais que nos afogam, sair dos eixos (geográficos, econômicos, políticos, artísticos...).

Quando fecho os olhos, eu me vejo na necessidade urgente da permissão da loucura do teatro e de todas as artes. É preciso romper com a ideia vigente que cultua o sucesso a qualquer preço. Precisamos de muito mais do que dois ou três espaços culturais. Precisamos de uma política pública de cultura, para a cidade, para o estado, para a região e para o país. Uma política pública que contemple cidades pequenas, que permita a circulação e a troca do conhecimento artístico. Precisamos recuperar nosso DNA, nossa história.

Democratizar o acesso à cultura e ao fazer artístico. Nossas autoridades precisam perceber que somente a arte tem o poder de recuperar nossa humanidade perdida. Infelizmente, quando abro os olhos é só parede. Alguém viu o meu cachorro?

O FETISM, o Palco Fora do Eixo, os coletivos culturais que brotam por todo o país... a rede que está se formando não pode passar despercebida. Talvez seja a ação mais importante da cultura no Brasil atual e, no entanto, nossas autoridades continuam cegas. Ousados artistas, parabéns por mais esta realização. Agradeço-lhes, pela lembrança de histórias como a do Teatro do Estudante e de tantas outras, estórias doces, de outros festivais.

(Amauri Araujo Antunes é ator, iluminador, diretor teatral e agitador cultural. Atualmente é professor de Licenciatura em Teatro da UFSM)