sábado, 6 de agosto de 2011

Fragmentos de uma vida roubada

O FETISM iniciou de fato com uma atração internacional, na noite de sexta-feira. O espetáculo ADN - Hijos sin nombre marca o retorno do grupo Tea Teatro a Santa Maria depois de sua participação na terceira edição do festival.

“Muchas veces siento nostalgia por cosas inentendibles, como si algo me uniera a ellas."

Se em 2010 o grupo argentino baseado em Albertin apresentou Abanico de Soltera, uma peça em homenagem ao escritor espanhol Frederico García Lorca, o público que foi ao Espaço Cultural Victorio Faccin na noite de ontem assistiu um pungente relato de um dos mais fortes traumas que a ditadura argentina causou à sua população.

ADN, a sigla, não é nada mais que a versão em espanhol para o acrônimo DNA. Para a peça, a molécula que dá nome ao espetáculo é fonte de desespero para uma personagem em busca de sua identidade, arrancada em um trauma vivido por milhares de argentinos.

A partir de 1976, a crueldade habitual das ditaduras latino-americanas ceifou muitas vidas, dentre elas de mães com bebês recém-nascidos. Em alguns casos, as crianças que nasceram durante a prisão das gestantes acabaram sendo adotadas até mesmo por militares, que escondiam a verdadeira origem das crianças.

Grupo Tea Teatro volta a Santa Maria um mês após o 12º Rosário em Cena
É a partir desta situação que a trama da peça se desenrola - mas não com a linearidade que o verbo sugere. Tudo no espetáculo interpretado por Andrea Juliá (a mãe), Dalila Romero (a filha) e Milena Medrano (a filha enquanto criança), é fragmentado e lacunar. Isso fica claro até mesmo no cenário, que tem um espelho despedaçado e que pouco reflete, uma rede cortada que expõe polaróides de rostos indefinidos, e na projeção de slides, que ora mostra uma mãe e uma criança de mãos em um corredor, ora mostra o mesmo ambiente vazio.

Apesar do estilo não tradicional de abordagem e da língua estrangeira, o espetáculo consegue ser bem compreendido por quem já tem algum contato como o espanhol. A obra não sofre adaptação para ser apresentada no exterior, contando apenas com uma breve leitura que explica o contexto histórico antes das atrizes entrarem em cena.

Em sua busca pela identidade, a situação da filha vai se tornando clara aos poucos. As situações entrecortadas pelas intervenções das personagens no palco e na fala vão adquirindo consistência, enquanto a filha começa a desvendar sua própria identidade.

Dalila Romero brilha em cena no papel de uma filha em busca de sua identidade

E é no mesmo momento em que o mistério da personagem de Dalila se desvenda que começa uma música. É Caetano Veloso em um de seus bons momentos, entoando Canto do Povo de um Lugar. Como que por capricho do destino, houve um erro na execução do arquivo, o que fez com que a música começasse falhada. Alguns segundos depois, porém, tomou forma, fechando o espetáculo com a mesma fluência da personagem, ao resgatar a identidade negada pelos anos de chumbo.

O público aplaudiu em pé, e ficou para um rico debate ao final da apresentação. Foi mais ou menos assim o fim do começo do FETISM. A organização agradece a todos os colaboradores e ao público que compareceu com seus aplausos em peso.

(ADN - Hijos sin nombre foi premiado no 12° Rosário em Cena nas categorias Iluminação, Júri Popular Adulto e Melhor Atriz, para Dalila Romero, e também no VI Festival Iberoamericano de Teatro, com o prêmio de melhor espetáculo).

Texto: Diogo Figueiredo
Fotos: Marcelo Cabala